Tributação e gênero: STF dá o primeiro passo

7/8/2020 às 15:45:20  


Por Tathiane Piscitelli

Professora de direito tributário e finanças públicas da Escola de Direito de São Paulo da FGV, é doutora e mestre em direito pela Faculdade de Direito da USP

Mas há dúvida quanto à efetividade da decisão sobre o salário-maternidade porque as causas das diferenças salariais entre homens e mulheres são estruturais

Esta semana, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão histórica: reconheceu a inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade. O argumento que permeou a tese vencedora foi o de que a tributação agrava a desigualdade de gênero, já que torna a contratação de mulheres mais cara, da perspectiva tributária. Afinal, apenas mulheres engravidam e, assim, seriam potenciais causadoras desse ônus adicional às empresas.

O debate judicial sobre igualdade de gênero não é novo. A Ministra da Suprema Corte dos EUA Ruth Bader Ginsburg ganhou notoriedade com sua atuação como advogada, antes de chegar à Corte, em casos que marcaram o direito da igualdade de gênero, alguns dos quais tratavam de matéria tributária. O livro “Because of Sex”, da advogada Gillian Thomas, descreve em detalhes dez casos judiciais que alteraram a interpretação da legislação americana em casos de discriminação de gênero.


No Brasil, perante o nosso Poder Judiciário, esses temas ainda caminham em passo lento. Ao lado da decisão do salário-maternidade, a mais recente e notória em favor das mulheres foi a obtida pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), em 2018, que beneficiou milhares de mulheres grávidas e mães de crianças de até 12 anos presas preventivamente. Segundo a decisão obtida no Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, a prisão preventiva de tais mulheres seria convertida em prisão domiciliar em até 60 dias. Dois anos após a decisão, porém, o próprio CADHu relata dificuldades em sua implementação nos tribunais estaduais – apenas 31% tiveram o pedido concedido em São Paulo, por exemplo.

Especificamente em relação ao salário-maternidade, a Fazenda Nacional estima um prejuízo de R$ 1,3 bilhão por ano aos cofres públicos, ao lado da justa dúvida quanto à efetividade da decisão para a maior empregabilidade e remuneração feminina. O ceticismo é pertinente porque as causas das diferenças salariais e de status profissional entre homens e mulheres são estruturais e superam o incentivo negativo que a contribuição patronal sobre o salário maternidade trazia.


De outro lado, um olhar sobre as políticas públicas de defesa das mulheres pode, parece-nos, explicar a situação institucional da fragilidade da defesa dos direitos das mulheres no Brasil. O Plano Plurianual de 2020 a 2023 substituiu o “Programa 2016: Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência”, destinado exclusivamente às mulheres, pelo “Programa 5034: Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos”, que contempla execução de políticas do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e, assim, atinge não apenas mulheres, mas idosos e pessoas com deficiência.

Além dessa redução prática da destinação de gastos públicos futuros a políticas que tratam de questões femininas, a análise da execução orçamentária de 2020 não mostra cenário mais alentador: segundo a Câmara dos Deputados, apenas R$ 5,6 milhões do total de R$ 126,4 milhões previstos para políticas públicas para mulheres na Lei Orçamentária de 2020 foram efetivamente executados. Isso, em um cenário de aumento da violência doméstica e sobrecarga de trabalho que as mulheres têm vivenciado no período da pandemia.

Da perspectiva tributária, de seu turno, a pauta da reforma tem sido ocupada pela reforma da tributação do consumo, com agravamento da regressividade. Tal agravamento se dará seja pela eliminação completa dos benefícios tributários sobre bens de primeira necessidade (no caso da PEC 45), seja pelo aumento da tributação dos serviços essenciais (no caso da CBS), ou mesmo pela criação de um novo imposto sobre transações financeiras (como o “imposto digital”).

Ainda que se alegue que não haverá aumento da carga tributária total, mas mera redistribuição, como já mencionei em outras oportunidades nesta coluna, devemos perguntar quem pagará a conta dessas alterações. Os mais pobres, sem dúvida. E, dentre eles, as mulheres negras, que são as pessoas que estão na base da pirâmide de distribuição de renda no Brasil.


A reforma tributária nos presentes moldes é, portanto, discriminatória da perspectiva de gênero. A correção dessa desigualdade, que poderia se dar pelo gasto público, não irá ocorrer. Resta-nos, então, jogar luzes sobre essa discussão, para que o pequeno passo dado pelo Supremo Tribunal Federal não seja o último.
Fonte: Valor Econômico
 
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